A Escola de Verão – Na Prática é uma iniciativa de formação avançada com foco no campo das artes performativas, destinada a artistas e investigadores, co-organizada pela Materiais Diversos e pelo Centro de Estudos de Teatro (FLUL). Visando dar ênfase e continuidade a um trabalho de esbatimento das fronteiras entre teoria e prática, com particular atenção nas metodologias exploradas no contexto da investigação artística, Na Prática reúne anualmente, durante cerca de uma semana, investigadores, estudantes e artistas num programa de criação e pensamento, nas zonas de intervenção da Materiais Diversos (Minde/Alcanena/Cartaxo). Os programas incidem, normalmente, numa prática específica de um/a artista, convidado/a a partilhar e a inscrever a sua pesquisa numa discussão alargada.
Na Prática, não distinguimos entre teoria e prática. O nome que decidimos dar a esta Escola de Verão, uma parceria entre um centro de investigação universitário em Estudos de Teatro e um festival dedicado a práticas interdisciplinares, é já um exercício de desapropriação do formato binário que, há muito, nos vem engrossando a vista e formatando a concepção das coisas. Pensar e fazer são farinha do mesmo saco. Tal como actividade e passividade, movimento e pausa, intelecto e físico, entre outras qualidades dicotómicas que teimam em esquartejar a biologia dos corpos. O mundo pode ser organizado (sonhado?) de outras maneiras e feitios. Há fendas por explorar nos padrões de percepção e representação da vida, interstícios por ocupar entre as estruturas disciplinares de saber e novas hipóteses a colocar às possibilidades de afirmação no espaço público. Queremos trilhar o caminho sugerido por essas indistinções, indisposições e outro tipo de informidades enquanto forma de re-mediar e reavaliar a nossa relação com os outros, as outras e o mundo.
Na Prática, isto significa abraçar uma atitude de re-questionamento e re-problematização de um mundo cada vez mais refém da dinâmica neoliberal. Um mundo cada vez mais regido pela cinética de captura e dominação das nossas subjectividades; cada vez mais coreografado pelo ritmo do consumo e do desperdício; mais impulsionado por uma velocidade abiótica que nos vai atrofiando os músculos e impermeabilizando ao espanto. Recuperar o sentimento (a aura?) do singular, da diferença, do efémero, do material, é urgente. Retomar o olhar curioso e paciente sobre as coisas, indispensável. O compasso que queremos adoptar é pautado pelo “Re-Re-…”. Um ranger de dentes que é também um manifesto. Uma invectiva de atrito às engrenagens corporativistas em curso; uma calibração dos nossos corpos para o respeito pela Vida. Estamos preparados para ruminar, conversar, passear, discursar, lentamente, ambulatoriamente, sobre tudo isto. Por vezes chamamos-lhes políticas do quotidiano; noutras de resistência.
Na Prática, queremos deslocar o olhar sobre o conhecimento dessa mesma economia mercantil, no seio da qual só é legítimo o que for admissível como produto – deliverable, como se apregoa nas feiras internacionais de ciência. O conhecimento (a sabedoria?) não nasce e morre nas caixas de selecção múltipla das candidaturas a financiamento, nem nos dados bibliométricos, nem na quantidade de correio electrónico enviado ou outro tipo de indicador de performance. Muitas vezes ele nem está mais aí, mas em tudo o que é colateral a este regime de clausura do pensamento, em tudo onde a dúvida se instalou e polinizou enquanto tal. O saber não respeita padrões de autoria nem identificadores digitais. Como os afectos, ele propaga-se pelos hospedeiros que melhor se lhe adequam, cola-se às reflexões que, por força das contingências, com ele esbarram. O conhecimento é situado pelas pessoas que sobre ele se debruçam, que a partir dele contagiam outras, num efeito epidémico para além de qualquer modelo universal de validação. Geralmente começamos por perguntar qualquer coisa. Depois convidamos alguém para lhe dar um corpo. Aos/às que, entretanto, se juntam a ver, escutar, experimentar, disparatar, contestar, partilhar, entre outras formas de convivência crítica, chamamos de correspondentes. Fazem parte da memória de uma verdade por (de)terminar.
Na Prática, reconhecemos a importância da preservação da memória e da luta incessante contra o esquecimento. A obsessão não é a de arrumar a casa ou emoldurar as ideias, mas a de construir um arquivo que mantenha viva, durante um pouco mais de tempo, a recordação dos nossos encontros. Apenas o tempo suficiente para os fazer reverberar noutras tantas possibilidades de encontros, noutros tantos diálogos, noutras tantas formas de assimilação e reflexão crítica. Na verdade, construímos este sítio-em-linha (este território?) para o ver emergir mais claramente debaixo das suas múltiplas camadas. O rizoma que daqui sairá pode vir a assumir as mais variadas formas, as mais variadas configurações e transmutações. Não é para isso que realizamos as coisas? – costumamos perguntar. Para as ver ramificarem-se noutras e dessas noutras ainda? Para já, escancaramos as portas. Sabe-se lá onde isto pode ir dar.
Na Prática, nem precisamos de evocar a arte. Não é desta que parte sempre a efabulação de futuros possíveis?